O abuso físico ou sexual de uma criança geralmente envolve a boca; mais de 50% das crianças abusadas sofrem danos na cabeça ou no pescoço. Além do trauma oral, as crianças maltratadas têm mais probabilidade de apresentar evidências de negligências dentais, incluindo gengivites, cáries e outros problemas de saúde.
Os achados de exames que devem suscitar suspeitas de abuso ou negligência são descritos no novo relatório clínico Oral and Dental Aspects of Child Abuse and Neglect , publicado no periódico Pediatrics.[1] O Medscape conversou com a autora principal Dra. Susan Fisher-Owens sobre pontos-chave no relatório para clínicos envolvidos no atendimento de crianças e adolescentes.
O relatório fornece detalhes sobre o teste de infecções sexualmente transmissíveis. O tempo é crítico. A evidência é mais provável de produzir um resultado se coletada dentro de 24 horas de exposição para crianças pré-púberes ou dentro de 72 horas de exposição para adolescentes mais velhos.[3,4] Este tipo de coleta não pode ser feito em todos os lugares, por isso, quando se suspeitar de abuso sexual, o clínico deve entrar em contato com os serviços de proteção infantil para que a investigação posterior (por exemplo, exame forense e história) possa ocorrer em um ambiente onde eles estão habituados a realizar essas avaliações da maneira o mais oportuna possível. Mais informações sobre este tópico podem ser encontradas no guia da AAP The Evaluation of Children in the Primary Care Setting When Sexual Abuse is Suspected .
Medscape: Na seção sobre marcas de mordida, o relatório aborda não apenas a cavidade oral do abusado, mas também a do abusador. Como os clínicos devem avaliar as marcas de mordida?
Dra. Fisher-Owens: A lição mais importante para o clínico geral é conhecer a diferença quanto ao formato de uma mordida humana e uma mordida de animal. Os pais ou cuidadores podem explicar uma marca na pele como sendo de um animal, mas a forma de uma mordida de animal é bastante diferente da de uma mordida humana. O próximo ponto é tirar fotografias para documentar a marca da mordida. Finalmente, se a pele está realmente aberta, o clínico pode usar um cotonete na pele para obter o DNA da saliva (apropriadamente coletado, documentado e rotulado, mantendo a cadeia de custódia). Um odontologista forense pode ser capaz de fazer um molde da marca da mordida que pode ser usado para identificar o agressor (Figura 2).
Figura 2. Uma marca de mordida humana. Cortesia: Dr. Anupama Tate.
Aspectos dentários do tráfico de crianças
Medscape: Como o exame bucal e dentário fornece pistas sobre o tráfico sexual humano e infantil?
Dra. Fisher-Owens: Infelizmente, o tráfico de seres humanos está se tornando mais comum. Não temos números precisos, porém mais de 100 mil crianças anualmente são vítimas de prostituição, e a idade média dessas crianças é cerca de 12 anos. Parte do aumento é o resultado do trabalho de médicos que tiveram uma maior atenção sobre as crianças que correm maior risco de tráfico (crianças que passaram por cuidado adotivo, crianças sem-teto, com cuidadores temporários e as que foram encarceradas). No relatório clínico Child Sex Trafficking and Commercial Sexual Exploitation: Health Care Needs of Victims a AAP aborda esse tema em maior detalhe.
Os problemas dentários das crianças traficadas podem ser devidos à falta de cuidados dentários preventivos, a uma má nutrição, ao crescimento lento dos dentes e aos dentes mal formados, ou ao abuso físico. Crianças de qualquer idade também podem apresentar cáries dentárias, infecções e dentes quebrados ou faltantes. Em alguns casos, crianças traficadas são trazidas para o atendimento dentário para melhorar a aparência, o que é importante para o valor delas como indivíduos traficados.
Também é fundamental para os prestadores de cuidados de saúde estar conscientes de que este problema não se limita às mulheres; os homens também podem ser vítimas de tráfico de seres humanos.
Negligência dentária
Medscape: Quais as principais questões relacionadas à negligência dentária que você gostaria que os clínicos conhecessem? Isso é considerado uma forma de abuso, ou é uma falta de consciência?
Dra. Fisher-Owens: Muita negligência dentária vem da ignorância. As taxas de problemas dentários são maiores entre as pessoas com baixo status socioeconômico, ao ponto em que as famílias têm uma visão fatalista de que, é claro, perderão os dentes na idade adulta. É um fato triste que, todos os anos, crianças morrem por doenças dentárias quase completamente evitáveis. Um ponto importante que surgiu na última década é o fato de que a negligência dentária é mais do que a falta de cuidados dentários. Em vez disso, a negligência dentária ocorre depois que os pais foram educados sobre cuidados odontológicos apropriados e providos de recursos para acessar os cuidados, mas ainda assim não conseguem provê-los para os próprios filhos. Várias histórias foram notícias sobre pessoas que foram acusadas de negligência dentária, mas que alegaram que ninguém aceitava o seguro de saúde, ou que não tinham transporte para o dentista. Estas são algumas das barreiras que devem ser abordadas antes de fazer uma acusação de negligência dentária ou de denunciar a família aos serviços de proteção infantil.
No campo da saúde, particularmente em medicina, precisamos educar nossos colegas sobre a importância de prestar atenção à saúde dentária de uma criança e não apenas dizer: “Oh, é apenas uma dor de dente”, ou “É apenas um dente de leite, então não importa.” Se as crianças tiverem cáries nos dentes de leite, elas não só são mais propensas a ter cáries quando adultos, mas também são menos propensas a se formar no ensino médio ou a encontrar um emprego que pague bem como a alguém que tenha um conjunto completo de dentes saudáveis. Os problemas com os dentes que começam na infância podem ter efeitos em longo prazo. É por isso que estamos tentando adotar mais uma abordagem multiprofissional para ajudar a manter as crianças saudáveis.
Aspectos dentários do bullying
Medscape: Também novo neste relatório é a seção sobre bullying. O relatório explica que anormalidades orofaciais ou dentárias, incluindo má oclusão, podem expor a criança afetada ao bullying. Você pode discutir aspectos da boca e dentes que podem desempenhar um papel no bullying?
Dra. Fisher-Owens: Um terço das crianças no Ensino Fundamental foi intimidado ou intimidou outra pessoa. E é verdade que as crianças com certas anormalidades orofaciais, ou que têm problemas com o alinhamento dos dentes (mordida pequena ou mordida demais) ou outros problemas dentários, são mais passíveis de ser intimidadas. Ocorre um ciclo no qual as crianças vítimas de agressão são mais vulneráveis ao abuso e ao tráfico, o que é prejudicial à autoestima. Essas crianças são menos propensas a cuidar de si, o que, por sua vez, afeta negativamente os dentes.
No entanto, francamente, neste momento, todas as crianças devem ser rastreadas para bullying. Os clínicos precisam iniciar as conversas dizendo: “Estou descobrindo que muitos dos meus pacientes estão tendo problemas por serem intimidados”, ou “Muitos dos meus pacientes vêem outras crianças sendo intimidadas”. Isso pode tornar a criança mais confortável para falar sobre experiências com bullying. Muitas vezes eu perguntei a uma criança sobre o bullying, apenas para que ela respondesse afirmativamente, e os pais da criança não tinham ideia. Ser capaz de abrir essa discussão na clínica permite que ela seja aberta dentro da família também.
Eu também gostaria de lembrar aos profissionais de saúde a importância do papel deles, de serem líderes de pensamento em suas comunidades. As comunidades precisam ter profissionais de saúde falando sobre a importância dos programas anti-intimidação. Os profissionais de saúde podem influenciar a forma como as pessoas abordam o bullying nas escolas.
O papel dos dentistas
Medscape: O relatório enfatiza, já no início, que se destina não só a clínicos em ambientes médicos, mas também a profissionais de saúde bucal. O que você vê como o papel dos dentistas na identificação inicial de uma questão oral que pode estar relacionada a abuso ou negligência?
Dra. Fisher-Owens: Os prestadores de serviços odontológicos estão se movendo para se envolver com a criança como um todo, e esta é outra área com a qual queremos que os dentistas se envolvam. A equipe odontológica frequentemente gasta mais tempo com o paciente na cadeira do que uma equipe médica gasta com um paciente no consultório. Assim, a equipe odontológica poderá explorar como a criança está indo na escola, quem são os amigos dela e assim por diante, e talvez tente saber se algo mais está acontecendo na vida da criança. Algo que me surpreendeu no desenvolvimento do relatório foi descobrir que os cuidadores de crianças que estão sendo maltratadas são susceptíveis a trocar de médicos, mas eles tendem a ficar com o mesmo dentista. Então, embora cada novo profissional médico que vê o paciente não esteja ciente de lesões frequentes, por exemplo, o dentista pode estar em posição de detectar isso. É uma das razões pelas quais pensamos que é tão importante para os dentistas e suas equipes serem mais conscientes de possíveis abusos ou negligências.
Medscape: Os dentistas, como outros profissionais de saúde, têm um papel na denúncia de abuso e negligência?
Dr. Fisher-Owens: Todos os profissionais de saúde, sejam dentistas, médicos ou da enfermagem, são repórteres obrigatórios de abuso. Se eles têm alguma preocupação, são obrigados a denunciá-la aos serviços de proteção à criança. Em geral, os profissionais médicos para crianças estão mais acostumados a fazer esses relatórios quando têm uma preocupação, e não aguardam a certeza de abuso ou a espera de alguém para fazê-lo. Nós podemos ajudar nossos colegas dentistas a se tornarem mais confortáveis com esse processo. Não se trata de uma acusação; trata-se de preocupação em manter a criança segura e saudável. Fazer um relatório aos serviços de proteção infantil não requer treinamento específico. As pessoas que trabalham em serviços de proteção infantil fazem isso todos os dias e podem orientar os profissionais através do processo.
Documentação e fotografia
Medscape: Com relação a qualquer uma dessas áreas de potencial abuso – físico, sexual, marcas de mordida – o que você recomenda em termos de documentação?
Dra. Fisher-Owens: Fotografar é muito útil porque os clínicos que estão observando essas lesões podem não entender completamente o que estão vendo. A fotografia, especialmente quando é feita com uma régua ou outro item para estabelecer escala, permite que aqueles que avaliem o caso mais tarde vejam o que o clínico viu. As contusões e as marcas de mordida desaparecem ao longo do tempo, então uma fotografia é muito útil.
Também é importante para os profissionais rotineiramente documentar achados que são normais, mas podem ser confundidos com provas de danos. Um excelente exemplo disso é a melanocitose dérmica (anteriormente denominada “manchas mongóis”), uma área de escurecimento da pele que se parece com um hematoma. Se ninguém documentou esta alteração dérmica encontrada no nascimento ou no primeiro exame de rotina da criança, mais tarde, alguém pode pensar que é uma evidência de abuso. É no melhor interesse da criança documentar achados normais que poderiam ser mal interpretados (Figura 3).
Figura 3. Melanocitose dérmica pode ser confundida com hematoma. Cortesia: Centro Médico da Universidade Americana de Beirut.
Medscape: O que mais você gostaria que os clínicos conhecessem sobre os aspectos orais e dentários do abuso e da negligência infantil?
Dra Fisher-Owens: Muitas vezes, essas crianças vão a um profissional médico com queixas somáticas – problemas para dormir, dores de estômago –, mas o clínico não encontra nada após o exame. Isso deve ser uma dica de que algo mais pode estar acontecendo na família ou na escola. As crianças que continuam aparecendo com essas queixas inespecíficas podem ser vítimas de bullying e ter medo de ir para a escola. Ou podem ser vítimas de abusos e pedem ajuda silenciosamente, pois não podem pedir diretamente. Ser sensível à solicitação silenciosa de ajuda, por uma criança, pode ser muito útil.