As selfies tiradas com smartphones aparecem em todas as mídias sociais, mas podem ter uma utilidade que vai muito além da vaidade.
Pesquisadores da University of Washington, em Seattle, estão desenvolvendo um aplicativo para smartphones que poderá transformar selfies em um método de detectar câncer de pâncreas nos estágios iniciais, o que, por sua vez, poderá melhorar consideravelmente os resultados.
Icterícia é um sintoma inicial do câncer de pâncreas. Ela causa amarelamento da pele e da esclera, devido ao desenvolvimento de bilirrubina no sangue. Mas se torna facilmente visível somente quando a doença está avançada.
É neste ponto que o novo aplicativo, batizado de BiliScreen, poderá fazer a diferença: o aplicativo para smartphones é capaz de capturar imagens da esclera no olho de um paciente e produzir uma estimativa do nível de bilirrubina antes que a icterícia esteja visível.
Um estudo clínico com 70 voluntários saudáveis comparou descobertas usando o aplicativo BiliScreen com resultados de exames de sangue que normalmente são usados para analisar a bilirrubina sérica. No estudo, o aplicativo foi usado junto com uma caixa impressa em 3-D que controla a exposição do olho à luz.
Os pesquisadores descobriram que o BiliScreen foi capaz de identificar “casos preocupantes” com uma sensibilidade de 89,7% e especificidade de 96,8% quando usado com a caixa.
O autor principal Alex Mariakakis, doutorando na Faculdade de Ciências da computação e Engenharia, University of Washington, advertiu que, apesar dos resultados animadores, o dispositivo ainda não está pronto para o apogeu.
“Ainda não chegamos no ponto em que podemos distribuí-lo para fins de diagnóstico/detecção”, disse ele ao Medscape. “Estamos planejando um estudo maior em algum momento do próximo ano acadêmico, com uma amostragem muito maior.”
“Nosso algoritmo se baseia em machine-learning (aprendizagem automática), o que significa que quanto mais exemplos de diferentes níveis de bilirrubina tivermos em nossa base de dados, melhor”, disse Mariakakis. “Presumindo que tudo corra bem, poderemos então iniciar uma parceria com a FDA para descobrir como obter a aprovação – um processo pelo qual a FDA está passando no momento pela primeira vez com alguns dos projetos mais antigos de nosso laboratório.”
Ele enfatizou que, ao medir os níveis de bilirrubina, o aplicativo utiliza a icterícia como um marcador. Apesar de a icterícia ser um sintoma de câncer de pâncreas, ela não é patognomônica desta doença.
“A icterícia também surge em pessoas com hepatite, síndrome de Gilbert e alcoolismo”, explicou Mariakakis. “Estamos especialmente interessados no câncer de pâncreas porque temos amigos e familiares que foram afetados pela doença, o que é um dos motivos para este foco.”
A pesquisa foi publicada na Proceedings of the ACM on Interactive, Mobile, Wearable and Ubiquitous Technologies, e será apresentada em 13 de setembro na Ubicomp 2017, a conferência sobre Pervasive and Ubiquitous Computing, da Association for Computing Machinery’s International.
Os olhos como ponte de ligação
“Os olhos são uma ponte de ligação muito interessante com o corpo – as lágrimas podem indicar quanta glicose você tem, a esclera pode indicar quanta bilirrubina há em seu sangue”, comentou em uma declaração à imprensa o autor sênior Shwetak Patel, PhD, professor de empreendedorismo da Washington Research Foundation no Departamento de Ciências da Computação e Engenharia e Engenharia Elétrica. “Nossa pergunta era: poderíamos capturar algumas dessas mudanças que podem levar a uma detecção precoce com uma selfie?”
O padrão-ouro atual para medir a bilirrubina é com um exame de sangue para analisar os níveis totais de bilirrubina sérica (TSB). Métodos não-invasivos de medir a bilirrubina, como o uso de um bilirrubinômetro transcutâneo (TcB), foram investigados. No entanto, observam os autores, os cálculos subjacentes de TcBs foram desenvolvidos para recém-nascidos e não são facilmente aplicáveis em adultos. Isso se deve, em parte, ao fato de que as concentrações normais de bilirrubina são muito maiores em neonatos, nos quais a icterícia é uma ocorrência bastante comum em comparação com adultos.

Anteriormente, a equipe do Laboratório de Computação Ubíqua, da University of Washington, desenvolveu um aplicativo para smartphones chamado BiliCam, a fim de detectar icterícia neonatal tirando fotos da pele. Um estudo com 530 bebês, publicado este mês na Pediatrics, descobriu que o BiliCam apresentou estimativas precisas de valores de TSB.
Os pesquisadores ressaltam que a esclera é mais sensível às mudanças nos níveis de bilirrubina do que a pele, devido ao fato da elastina na esclera ter uma grande afinidade pela bilirrubina. Dessa forma, os pesquisadores exploraram o potencial do recurso para uso em uma ferramenta de detecção não-invasiva que possa identificar a doença nos estágios iniciais.
Este tipo de dispositivo precisaria ser suficientemente sensível para medir a variação dos níveis de bilirrubina exibidos por adultos. A icterícia, no entanto, normalmente não é observada, mesmo por um olho treinado, até que a bilirrubina atinja um nível de aproximadamente 3,0 mg/dL. Níveis maiores que 1,3 mg/dL são uma causa de preocupação médica. Portanto, observam os pesquisadores, há uma “lacuna na detecção”. Os níveis de bilirrubina de 1,3 a 3,0 mg/dL não serão detectados a menos que o nível de TSB seja analisado, e tal análise é raramente realizada sem razões suficientes.
Identificando tendências e iluminação
Outra consideração importante é que os níveis de bilirrubina variam com o tempo. Os autores ressaltam que o nível de bilirrubina pode exceder os valores normais em uma medição, mas logo após pode voltar ao normal, devido à variação normal.
Os valores que continuam em uma tendência ascendente indicam uma condição patológica subjacente, como a obstrução do canal biliar causada por um tumor. Além do diagnóstico, as tendências nos níveis também são importantes para a eficácia do tratamento de medição. Mas as tendências nos níveis de bilirrubina são difíceis de identificar, ressaltam os autores, devido à necessidade de repetidas coletas de sangue, que podem ser desconfortáveis e inconvenientes, especialmente no ambiente ambulatorial.
O aplicativo BiliScreen utiliza a câmera integrada do smartphone para coletar imagens dos olhos. As representações da esclera são então extraídas da imagem usando a visão do computador. O aplicativo calcula a informação da cor a partir da esclera, que se baseia nos comprimentos de onda da luz que está sendo refletida e absorvida, e em seguida, a correlaciona com os níveis de bilirrubina usando algoritmos de aprendizagem automática.
Como podem ocorrer mudanças na cor devido a variações na iluminação, o BiliScreen foi avaliado com dois acessórios diferentes que ajudam a registrar as diferenças nas condições de iluminação do ambiente. O primeiro acessório é uma caixa usada na cabeça, que bloqueia simultaneamente a iluminação do ambiente e proporciona iluminação interna controlada por meio do flash da câmera. O segundo é um par de óculos de papel impresso com quadrados coloridos que facilitam a calibragem. Resultados ligeiramente melhores foram obtidos quando o aplicativo foi usado junto com o acessório da caixa.
O BiliScreen tem requisitos mais rígidos de precisão do que o Bilicam, que se destina a recém-nascidos. Diferente da cor da pele, que varia consideravelmente entre populações diferentes, as mudanças na esclera são mais consistentes entre todas as raças e etnias.
Público-alvo
“Para torná-lo mais aproveitável, estamos tentando remover completamente a necessidade de um acessório, seja óculos ou caixa”, disse Mariakakis. “Nossa ideia é a de que, se pudermos calcular de alguma forma a cor precisa de um objeto que já esteja na imagem, poderemos usá-lo como uma referência de cor, assim como fazemos com os óculos atualmente.”
Ele observou que, provavelmente, a abordagem mais razoável de uso do aplicativo seria a de que ele seja usado por recomendação de um médico para pacientes que façam parte de um grupo de alto risco.
“Dessa maneira, haverá alguém que interprete os resultados de uma maneira mais razoável”, disse ele. “Temos ciência de que este aplicativo poderá levar a uma preocupação desncessária com a saúde por parte de hipocondríacos. Um aplicativo assim informaria às pessoas dados que fomentariam os temores delas, e isso é algo que levamos muito a sério.’
Ele acrescentou que um outro uso, que poderá ter impacto mais imediato, estaria relacionado à gestão de doenças. “As pessoas que já têm câncer de pâncreas coletam sangue diariamente para monitorar a bilirrubina, especialmente após um tratamento, e usar o BiliScreen para obter esses dados de modo não-invasivo pode se revelar útil.”
O estudo foi financiado pela National Science Foundation e pela Coulter Foundation, e recebeu fundos de doações da Washington Research Foundation.
Proceedings of the ACM on Interactive, Mobile, Wearable and Ubiquitous Technologies. 2017;1:art20. Resumo