Menos tempo no estágio de sono REM (do inglês rapid eye movement,ou “movimento rápido dos olhos”) parece aumentar o risco de demência, de acordo com uma nova pesquisa.
A associação entre o sono REM e a demência pode ser parcialmente explicada pelo distúrbio respiratório durante o sono, sugere o estudo.
“Se você observar nosso artigo no contexto de outros artigos que estão sendo publicados, parece que há uma relação entre o distúrbio respiratório durante o sono e o possível aumento no risco de demência. Então é importante resguardar e gerenciar isto de forma apropriada”, disse ao Medscape Matthew P. Pase, PhD, pesquisador sênior, Swinburne University of Technology (Austrália) e investigador no Framingham Heart Study.
O estudo foi publicado on-line em 23 de agosto, na Neurology.
Framingham Heart Study
A análise incluiu 321 participantes na coorte de descendentes (offspring cohort) do Framingham Heart Study (FHS). O estudo atual incluiu participantes com 60 anos de idade ou mais (67 anos em média) para os quais os dados de demência incidente estavam disponíveis.
Em um ciclo de exames do estudo (de 1995 a 1998), a coorte completou uma polissonografia noturna. Os pesquisadores investigaram o percentual de tempo no estágio 1, no estágio 2, no sono profundo (do inglês, slow-wave sleep ou SWS: estágios 3 e 4 combinados) e no sono REM.
Durante o estágio de sono REM em que ocorrem os sonhos, os olhos se movem rapidamente e a atividade cerebral aumenta, acompanhada de um aumento na temperatura corporal, e uma pulsação e respiração mais rápidas.
Pessoas adormecidas geralmente passam pelos cinco estágios do sono em um padrão cíclico – do estágio 1 ao REM – e depois retornam ao estágio 1. Conforme a noite progride, o tempo no sono REM aumenta. Então os indivíduos geralmente permanecem cerca de 20% do tempo total de sono no estágio REM, afirma o Dr. Pase.
Pesquisadores também examinaram o tempo total de sono, a latência do início do sono, a eficiência da latência do sono REM, acordar após começar a pegar no sono, e o índice de apneia-hipopneia.
No FHS, a triagem cognitiva é realizada a cada ciclo de exame, usando o Miniexame do Estado Mental. Testes neuropsicológicos extensos são realizados em ciclos de exames selecionados.
Durante um acompanhamento médio de 12 anos, houve 32 casos de demência incidental, 24 dos quais foram causados por doença de Alzheimer (DA). Após o ajuste em relação à idade e ao sexo, um percentual menor de sono REM foi associado a um risco anual aumentado de demência (hazard ratio, HR, de 0,91; intervalo de confidência, IC, de 95%, 0,86 – 0,97; P = 0,004) e de Alzheimer (HR de 0,92; IC de 95%, 0,86 – 0,99; P = 0,02).
Os resultados permaneceram significativos após o ajuste adicional em relação a fatores que poderiam afetar o risco de demência ou o sono, incluindo índice de massa corporal, educação, status APOE ε4, tabagismo, pressão arterial sistólica, diabetes, doença cardíaca, depressão, e uso de remédios para dormir, antidepressivos, ansiolíticos e anti-hipertensivos.
Os autores descobriram que cada percentual de redução do sono REM estava associado a 9%, em média, do aumento do risco de demência.
Distúrbio respiratório durante o sono
A exclusão de casos de comprometimento cognitivo leve, e de participantes que desenvolveram demência em três anos de acompanhamento, não mudou significativamente a associação. Ter um cronótipo antecipado ou tardio – um ritmo circadiano fora do normal – também falhou em explicar a associação entre o sono REM e a demência. No entanto, os autores não tiveram informações sobre o trabalho em turnos, o que poderia ter esclarecido melhor o efeito de ritmos circadianos variados.
A latência do sono REM também foi ligada à demência. Comparado com o maior tercil de latência do sono REM, o menor terço foi associado a um risco anual menor de demência depois de realizados os ajustes de idade e sexo (HR de 0,37; IC de 95%, 0,14 – 0,97) e após ajustes adicionais para fatores de risco vasculares, sintomas de depressão, e uso de medicação (HR de 0,26; IC de 95%, 0,08 – 0,85).
“Descobrimos que aqueles que demoraram mais para chegar ao sono REM tiveram maior risco de demência, o que complementa ou concorda com a nossa outra descoberta”, de uma ligação entre o percentual de sono REM e a demência, disse o Dr. Pase.
Uma maior incidência de despertar após o início do sono, que é uma medida de dificuldade em manter o sono, também foi associada com um aumento no risco de demência no modelo estatístico totalmente ajustado. Por outro lado, os estágios do sono REM não foram associados à demência.
“Esperávamos visualizar uma relação entre o tempo em sono profundo e o risco de demência, mas não foi o que descobrimos. Os resultados sugerem que talvez exista algo que não estamos entendendo muito bem sobre o sono REM e que é importante”, disse o Dr. Pase.
O sono REM pode ser interrompido por um distúrbio de sono não tratado. Os autores descobriram que a associação entre o sono REM e a demência foi parcialmente explicada por hipopneias. Após a exclusão de participantes com alto índice de despertar durante o sono REM devido à hipopneia, a associação entre a baixa quantidade de sono REM e a demência foi reduzida (HR de 0,94) mas não foi significativa (P = 0,17).
“Então pode haver algum papel na associação entre o distúrbio respiratório durante o sono, mas ele não parece explicar todo o quadro”, explicou o pesquisador
Ele ressaltou a dificuldade de examinar distúrbios do sono “detalhadamente” sem amostras de tamanhos muito grandes.
Ansiedade e estresse podem desempenhar papel
Apesar de mecanismos que ligam o sono REM com a demência não serem totalmente compreendidos, a perda de função colinérgica pode estar envolvida, afirmam os autores.
Os neurônios colinérgicos são determinadores importantes do sono REM, com uma atividade colinérgica baixa durante o sono profundo e alta durante o sono REM. Além disso, a DA está associada com a perda de função colinérgica.
O sono REM pode ajudar a manter as comunicações do cérebro que são interrompidas pela demência, disse o Dr. Pase. Os autores originalmente acreditavam que a baixa quantidade de sono REM poderia ser um indicador de alterações cerebrais que ocorrem nos estágios iniciais da demência, explicou ele.
“Mas descobrimos que a baixa quantidade de sono REM estava prevendo o risco de demência em longo prazo. Então não parece uma explicação para nossas descobertas.”
O fato de que a associação entre a baixa quantidade de sono REM e a demência não foram impulsionados naqueles indivíduos com comprometimento cognitivo leve não confirma a ideia de que falta de sono REM é um indicador de demência. A ansiedade e o estresse podem desempenhar um papel no aumento do risco de demência ou na restrição de sono REM. O Dr. Pase sugeriu uma possível relação cíclica.
“Você pode ter este efeito de, digamos, altos níveis de estresse interrompendo seu sono e contribuindo para a demência. Então o sono interrompido pode aumentar o risco de demência. Poderia existir uma relação cíclica entre o estresse e um sono ruim, e sono ruim e mais estresse, etc.”
Enquanto as descobertas são interessantes de um ponto de vista biológico, não há implicações clínicas imediatas, exceto pelo conselho óbvio de melhorar o sono REM de alguma forma, afirmou o Dr. Pase.
“Cabe aos pesquisadores entender por que observamos esta associação e aprofundar; isto então deveria levar a mais recomendações clínicas para os médicos.
Enquanto isso, porém, se o estresse ou o distúrbio respiratório estiverem desempenhando um papel durante o sono, “lidar com os distúrbios do sono e controlar a ansiedade poderá ajudar” a reduzir o risco de demência, explicou.
A equipe de pesquisa deseja combinar seu grupo de estudos com outras coortes semelhantes para assim criar uma amplitude maior de dados que permitiria uma análise mais detalhada, por exemplo, do envolvimento do distúrbio respiratório durante o sono.
Fator de risco modificador
Comentando as descobertas para o Medscape, Heather Snyder, PhD, diretora sênior de relações médicas e científicas da Alzheimer’s Association, afirmou que os autores do estudo tiveram sorte de aproveitar os dados do FHS.
“Um dos pontos fortes do estudo foi que os pesquisadores têm um grupo muito forte de indivíduos que foram observados por um longo período de tempo, e sobre os quais há muitas informações.”
O novo estudo “se soma a um conjunto de evidências que continuamos vendo aparecer no campo”, afirmou Heather.
A primeira evidência de uma ligação entre o sono e a demência tardia começou a aparecer, talvez há cinco ou seis anos, explicou ela.
“Ao longo dos anos observamos refinamentos destes estudos, e conseguimos adquirir informações mais detalhadas sobre qual a característica do sono” pode afetar na demência.
Heather mencionou uma pesquisa apresentada na Alzheimer’s Association International Conference deste ano que ligou o sono interrompido ao acúmulo de amiloide e tau, duas características da DA.
No entanto, ela ressaltou que a ligação ainda é uma associação, e que “não sabemos se há uma causa e um efeito”.
Ainda assim, o interesse atual em compreender o papel do sono na demência pode estar estimulado pelo fato de que os distúrbios no sono são tratáveis.
“Se você se refere ao distúrbio respiratório durante o sono, ou à apneia do sono obstrutiva, há tratamentos potenciais”, disse Heather.
“Se você realmente conseguir tratar o distúrbio do sono, pode conseguir prolongar sua vida em longo prazo, se existir essa relação de causalidade aqui.”
O estudo foi apoiado pelo National Heart, Lung, and Blood Institute , pelo National Institute on Aging , e pelo National Institute for Neurological Disorders and Stroke . O Dr. Pase e Heather não revelaram conflitos de interesses relevantes.
Neurology . Publicado on-line em 23 de agosto de 2017. Resumo